Pai é uma pessoa que nunca deveria ir embora, por motivo algum. Nem por acidente, nem por doença, nem por desleixo, nem pela causa mais natural do mundo.

Talvez o seu pai não tenha sido um herói para você (se é que você o conheceu ou conviveu com ele tempo suficiente). Mas, para mim, a figura de um pai é um negócio tão forte, tão forte, que faz uma falta danada quando, de repente, desaparece.

Você sabe que isso vai acontecer um dia. Só que você não sabe mais nada quando, de fato, acontece.

Tive o privilégio de aprender por 32 anos com o meu. Aprender a viver, mesmo.

Lembro-me de ouvir histórias sobre ele desde que me entendo por gente, especialmente sobre as necessidades pelas quais passou quando pequeno. Cresci, então, observando de forma muito atenta o seu empenho incansável em proporcionar a nós uma vida confortável. Entendi cedo de onde vinha toda aquela determinação. Era por nós, sua família. Era para que vivêssemos bem. Era para que não passássemos pelos perrengues que ele deve ter enfrentado e eu nem sei.

Meu pai costumava descascar mexericas e tirar as sementes para que meu irmão e eu as liquidássemos numa sentada só. Foram dúzias e dúzias de mexericas. E de mangas coquinho, espada e rosa. E de melancias. Fez isso até quando pôde, já para os netinhos, que genética e felizmente herdaram seu gosto por frutas.

Somente uma vez o vi chorar: errou a dose de força numa brincadeira de fazer vento com um lençol e acertou meu rosto. Criança, abri o berreiro. Ele chorou junto, pedindo desculpas. Como me ensinou, aquele único choro! Ainda antes de ser alfabetizada, eu já tinha aprendido a importância de reconhecer meus erros, pedir desculpas, mostrar-me vulnerável, ser flexível. Quanta coisa…

A verdade é que nunca precisou de muito para ensinar. Seu exemplo gritava as palavras não ditas por ele.

Todo seu amor por nós foi depositado em forma de tijolos, café e sonhos numa casa de campo em Serra Negra. A varanda era o lugar onde conversas especiais aconteciam. Ele, na rede. Eu, tomando um solzinho no chão de ardósia. Fazia muitos planos, ainda que com cabecinha branca e físico não tão vigoroso. Pensava em hipóteses, calculava, abstraía, ponderava. E, mesmo sabendo tanto mais que eu, pedia minha opinião.

Pensa que ele me deixava ganhar alguma partida de qualquer coisa que seja? Nananina. Nem quando me ensinou a jogar xadrez, nem no truco pré-cirúrgico internado no Hospital do Servidor Público, nem na última partida de buraco que jogamos em Serra Negra. Ele ganhava, o fiadamãe. E ria. (Reclame da minha competitividade, se tiver coragem).

No velório, foi estranhamente confortante ouvir relatos de seu bom-humor tão característico. Todo mundo vinha me falar que meu pai brincava. Eu sabia que ele era tirador de sarro – e devia ter atribuído antes a ele essa característica que tanto importuna meus tolerantes amigos. Mas eu não tinha ideia do quanto essa postura cativava pessoas. Não foram poucos os que sorriram e me contaram uma história divertida que tiveram com meu pai.

Puxa vida, eu gostaria de ter dito a ele que tenho orgulho de ser um pouco parecida, nesse sentido também.

Tive tempo de contar-lhe que seu exemplo me ensinou muito sobre Deus. Havia acabado de ganhar um raro carinho no cabelo, deitada ao seu lado. (Raro, não porque meu pai não era carinhoso, e sim porque a linguagem que usava para demonstrar amor eram os incontáveis atos de serviço que fazia por nós). Comovida, disse a ele que muita gente não tem uma boa relação com Deus porque nunca se sentiu amada por seu pai. E que eu tinha o privilégio de perceber Deus como um Pai maravilhoso, porque me sentia amada pelo meu. “Esse carinho besta que você me fez agora mostra muito amor”, eu concluí. Àquela altura da luta física contra um câncer avassalador, ele mal conseguia manter-se desperto, quanto menos falar, por conta da medicação forte. Mas para o Gibinha era assim: a piada valia qualquer esforço. Então ele abriu os olhos por um momento e, sorrindo, censurou: “Carinho besta?“.

Pai é uma pessoa que nunca deveria ir embora, por motivo algum. Mas, péra. Ele nunca vai embora.