Uma professora do meu curso de Pedagogia nos provocou a refletir por que utilizamos contos para crianças pequenas. Eu logo pensei: porque a gente pre-ci-sa ouvir histórias.

Somos seres feitos de histórias!

Histórias com momentos tristes, alegres, muito suspense e algumas surpresas, às vezes com pitadas de drama e outras com mais tragédia do que gostaríamos.

Monstros? Quem já não teve que enfrentar algum?

O que diriam de nós os fantasmas que diariamente costumamos criar e especialmente aqueles que cultivamos há tanto tempo? Quem nunca?

Algumas de nossas histórias são mais fáceis de contar. Compartilhamos facilmente com amigos, publicamos cenas em blogs, Facebook e até WhatsApp. Outras, queremos esconder ou fazemos questão de esquecer. Estão lá guardadas em baús trancados a sete chaves nos porões da memória de nosso ser.

O fato é que todos temos alguma história para contar.

Antigamente, dependíamos delas para saber de onde viemos e o tanto que já aconteceu entre os homens antes da nossa chegada. Nossa história sempre começa dentro de uma outra história, bem maior, mais complexa e antiga.

(Há quem diga que a nossa história também tem fios que a conectam com outros tempos e lugares. Mas não é sobre isso que gostaria de falar. Cada um tem o direito de acreditar no que lhe convier. E, depois dos 30, as reflexões sobre esse assunto se ampliam consideravelmente em nossa busca de sentido pela vida).

Mas o que seria de nós se ninguém contasse histórias?

A comunicação seria somente para trocar informações de forma objetiva e factual acerca dos fenômenos ou para fazer pedidos, ter necessidades atendidas e resolver questões de ordem prática. Nenhum enredo, nenhuma trama.

Impossível de imaginar. Pelo menos para mim que fico totalmente absorta, quase boquiaberta, assim que começa uma história.

Meus filhos me pedem uma história toda noite antes de dormir e isso muito me alegra, embora não consiga fazê-lo sempre.

E cada vez mais tenho a convicção de que a vida humana depende de histórias, assim como fisicamente depende de comida.

As histórias também são um alimento, mas para a alma.

E são elas que nos ajudam em nosso processo árduo e profundo de humanização. Se aprendo, aprendo junto com o outro, acompanho sua história e passo a fazer parte dela.

Podemos perguntar a qualquer mãe (pai também, mas é que sou mãe e usar essa expressão é mais forte do que eu) se a chegada de um filho não parece o começo da história de um “novo Eu”.

A minha vida antes dos meus filhos às vezes me parece uma história distante… História de uma outra pessoa que mal conheço e de quem preciso me esforçar para lembrar. Isso também é comum em muitas histórias de amor.

O lindo é que quem chega, o “novato”, quer saber do passado.

E o quer não apenas por curiosidade, mas por profundo interesse pelo caminho de crescimento pelo qual a pessoa amada passou para chegar até o presente.

Que caminho te trouxe até aqui? Ah, esse caminho que parece tão individual e único… Mas que, ao ser compartilhado, vira uma história que abrange o recôndito de muitas vidas, de muitas pessoas e de diferentes lugares!

Essas histórias nos permitem olhar-nos por inteiro, com nossas luzes e nossas sombras dançando e rodopiando à nossa volta à espera da revelação de um segredo ou de uma reviravolta imprevista do destino.

Histórias despontam nossos desejos e sonhos, mas também nossas forças e fraquezas. E, por mais que a nossa seja uma “velha história”, sempre tem o poder de nos tocar e de nos ajudar no processo de autoconhecimento. Com elas, aprendemos a lidar com todos os elementos que vivem em nós. Assim, histórias são um grande alicerce em nosso processo de desenvolvimento e transformação.

Histórias como caminho para a imaginação e o entusiasmo

Por muito tempo esbravejei por terem me “enrolado” com a imagem da princesa que espera seu príncipe encantado. Aquela frágil e boa criatura que está sempre em apuros e precisa ser salva.

Hoje sou grata, pois consegui entender algo sobre o qual acredito ser fundamental que haja uma reflexão profunda: se histórias são importantes e nos alimentam a ponto de carregarmos conosco imagens de coisas que nos foram contadas na infância, com que tipo de substâncias estou me nutrindo? E, ainda mais: o que estou dando às crianças como alimento?

Temos que aprender não apenas a avaliar a qualidade de uma história, mas a adequação desta a cada faixa etária. Porque nossa alma não aguenta qualquer coisa!

Temos que digerir tudo o que ingerimos nessa vida, inclusive o conteúdo que recebemos através das histórias.

Os adultos (ou aqueles que já passaram pela roda dos 21 anos) já estão aptos a fazer isso de forma autônoma, principalmente se tiveram seu processo de crescimento cuidado e respeitado. Do contrário, vão ter que se esforçar mais para dar conta da digestão.

No entanto, não é o que acontece com as crianças.

Elas estão completamente abertas, vulneráveis e são facilmente impressionáveis por tudo e qualquer coisa que chega até elas.

Então, o que é adequado?

Eu fui criada dentro do mundo de fantasia da Disney que – não posso negar – continuo amando.

Mas, agora, entendo porque ficava tão indignada com a imagem da princesa. E me dói, porque hoje tenho consciência e preciso proteger meus filhos de imagens prontas e estereotipadas como as da Disney.

(Quem é fã dessa maravilhosa fábrica de sonhos deve estar me odiando. Mas leia um pouco mais, nem que seja para me xingar ao final).

Só escrevo porque para mim, hoje, é verdadeiro. E olha que fui criada nos Estados Unidos, quase dentro do castelo da Disneylândia.

Estereótipo é uma imagem fechada, reduzida. Digamos que, incompleta, de algo. E, pior: é estanque.

Quem já viu a Cinderela, dificilmente vai conseguir imaginar outra diferente da loira de olhos azuis, com seu coque belamente preso e seu vestido azul cintilante.

E o príncipe? Também alto, forte e, na maioria das vezes, loiro. E um anão? Como poderia ser, além daquelas pequenas figuras coloridas e cantantes que acolheram a Branca de Neve em sua casa, como mostra o filme? Aliás, sua casa, como poderia ser? Num tronco de árvore talvez? Dentro de uma gruta?

O mundo de ricas possibilidades se esgota quando damos uma imagem formatada do que deve ser a princesa, a bruxa, o coelho, o cavalo, etc…

A fértil fantasia que nos permite criar e recriar o mundo não acaba, mas murcha drasticamente.

Imagine se te obrigassem a tomar o mesmo tipo de suco ou refrigerante a vida toda e você não pudesse consumir nada além disso?

É o que acontece com as imagens que damos antes que a criança tenha feito o exercício de fantasiar e elaborar inúmeros personagens brincando com sua imaginação.

Depois, precisamos ficar lutando para nos libertar dessas imagens, se querermos descobrir o que de diferente pode viver em nós.

Ficamos aprisionados por algo que alguém lindamente concebeu (confesso que tenho ficado horrorizada com a falta de proporções humanas nos desenhos e passo mal quando vejo a crueldade que fazem com as feições das mulheres que nunca envelhecem e têm uma cintura que nenhum mortal poderia ter). No entanto, que nos chega de fora para dentro em um momento no qual precisamos aprender a ativar conceitos desde nosso interior, da nossa imaginação. A natureza é uma fonte propícia para estimular o processo imaginativo com sua imensa beleza e criatividade que está em constante movimento e transformação. É algo vivo, fortemente conectado com forças criadoras!

Tudo o que recebem vira referência de mundo e de ser humano para as crianças, que veem a mesma princesa na TV, nos livros, nas roupas, nas mochilas… por todo lado.

Depois não reclamem que os adolescentes não têm ânimo nem criatividade! É difícil tê-los depois que se extingue neles a chama do entusiasmo criativo de inventar e recriar, cada vez de novo, na infância. É esse o momento ideal, é essa a hora propícia para estimularmos a criatividade da criança, para que ela vire uma grande fogueira no futuro!

“Mas as crianças gostam!”, dizem muitos.

Que opção elas têm, se desconhecem outra realidade?

São bombardeadas pelo merchandising que, no Brasil, tem permissão legal para abusar de todas as suas táticas de persuasão e manipulação.

Quem pode defendê-las?

Seríamos nós, adultos, se também não ficássemos presos na rede do encanto.

Por onde eu começo?

Parece que nós, adultos, também estamos quase sem opção. É difícil sair por aí e nadar contra a corrente.

Não vou dizer “não assista a mais nada”. Gostaria. Seria o ideal. Mas não posso, pois vivemos no mundo real.

Então, prefiro dizer: “assista o menos possível”. Menos é muito mais, garanto. Só aos fins de semana. Jamais antes de dormir. E, quando for ver, por favor, escolha antes, assista junto para ajudar a filtrar o que vem.

Não deixe que essas imagens permeiem a nossa vida por outras vias: nada de sapatos ou roupas com imagens, cereal ou biscoito com embalagem, material escolar estampado de princesas e heróis, nada disso. Já despolui bastante e a natureza agradece.

E, agora vem o que eu realmente queria enfatizar: conte mais histórias!

No começo é difícil, pois perdemos a prática. Mas, depois, é pura diversão.

Quando as crianças são bem pequenas, enfoque nas ações, no trabalho, no esforço. Elas querem saber como fazemos as coisas. Os contos rítmicos são fantásticos. Sabe aqueles contos em que acontecem coisas que vão se acrescentando outros, e no final tudo volta ao começo? Ou, então, depois se resolve a situação? São desses que os pequenos gostam. Se eles puderem vivenciar trabalho junto, melhor ainda. Aliás, esse é o melhor dos mundos.

Crianças pequenas precisam viver no sonho – e isso não quer dizer no mundo perfeito. Muito pelo contrário, quando sonhamos temos pesadelos também. E muitos. “Sonho” significa “fora do mundo da dura realidade material cotidiana e dentro do mundo dormente e inconsciente da alma”. A melhor coisa para essa fase é conto de fadas.

As crianças maiores (depois dos 7 anos) já podem saber das emoções, do sofrimento e desventuras reais. Conte histórias da sua vida, dos seus pais, dos avós. Histórias reais.

Um convite a você, que leu até aqui

Voltamos para a pergunta da professora que relatei no início: por que contamos histórias?

Contamos histórias para nos manter vivos.

Para que as crianças (e adultos) estejam livres do prejuízo trazido pelas imagens comerciais, isto é, livres do “juízo” que outra pessoa fez de um personagem, de uma paisagem ou de um elemento de uma história que traz fundamentos da alma humana.

Esses fundamentos são chamados de arquétipos. Eles alcançam a natureza dos estados da nossa alma como poucas ferramentas são capazes de fazer. Falam-nos dos nossos caminhos sem julgamento e sem falsidade.

Moralismo não cabe, pois a alma é amoral. Precisa vivenciar os dois lados do ser humano para saber o lugar de cada coisa. Os dois lados existem e precisamos saber lidar com eles e colocá-los nos seus devidos lugares para não dar vazão a tantas distorções de caráter e personalidade.

É por isso que não podemos cortar pedaços dos contos originais que nossos antepassados lutaram para preservar contando oralmente de geração em geração até que alguém pudesse registrá-los com a escrita.

Depois que entendi que cada elemento da história tem uma função e um porquê e que corresponde a uma vivência da nossa alma, pude mergulhar nos contos de fadas e parar de esbravejar para, então, analisá-los.

Não devemos mudar as palavras, pois as crianças sabem reconhecer a que lado nosso pertence não só o linguajar como também o comportamento exposto na história.

Leia e releia com a alegria e a confiança de uma criança. Descubra novos aspectos dentro de vocês e deixe florescer novas qualidades na alma de cada ser humano tocado por uma história verdadeira.

Deixo o convite para que nos reapaixonemos pelos contos de fada na sua pureza. Sem interpretações e julgamentos. De preferência, também sem imagens ou expectativas.

Só vivendo na entrega tranquila e amorosa da criança que inspira tudo o que recebe e se inspira a partir do que reconhece existir dentro de si.

Coragem! Crie tempo e espaço em sua vida para essa vivência.

Prepare um ambiente aconchegante, quem sabe no fim do dia, quando o ritmo estiver desacelerando, talvez com uma pequena vela para dar o tom…

E boas histórias!