A oportunidade surgiu quando a empresa resolveu fazer o que os marqueteiros modernos pomposamente batizaram de downsizing (diminuir de tamanho, em português). Traduzindo: fui demitida.

De um dia para o outro, o tempo que era escasso passou a abundante. Se antes me escorria pelos dedos, agora ele era meu. Só meu. Fazer o curso que havia muito estava protelando, comprar frutas e legumes no Mercado Central, entregar-me a uma sessão de shiatsu, seguida de ofurô, em plena segunda-feira. Ah, que delícia!

Nas primeiras semanas, aproveitei bem meu período de ócio.

A providência inicial foi abolir o alarme do despertador, substituído pelo canto dos canários do vizinho. A ginástica que me tirava da cama às sete deu lugar a revigorantes aulas de ioga. À noite, que ninguém é de ferro. Matriculei-me no desejado curso de história da arte e aumentei o número de incursões à cozinha para esperar o maridão sempre com uma saborosa novidade na hora do jantar. Entre uma ida ao supermercado e outra ao shopping, estava curtindo minha liberdade recém-adquirida.

Até que ela chegou, a danada da culpa.

Tal qual o bichinho da goiaba, apareceu sem ser convidada.

Comecei a me sentir igual àquele gordo que, depois de se livrar de dez dos vinte quilos que precisava perder, resolve comemorar com um sorvete. As primeiras lambidas proporcionam um prazer só comparável ao dia em que ganhou seu primeiro balão num parque de diversões. Mas é só alguém lhe lançar um olhar de censura para que a felicidade saia voando como um balão perdido no céu. Afinal, o cara ainda está gordo. Menos gordo, é verdade, mas, ainda assim, gordo.

No meu caso, flanar enquanto os outros davam duro virou um tormento. Cheguei a me disfarçar com boné e óculos escuros para ir à sessão de cinema das quatro.

Ser vista no shopping, carregada de sacolas, tornou-se programa de alto risco. E se eu fosse flagrada? Já podia imaginar a manchete: “Jornalista desempregada vira perua e diz que não quer outra vida.” Por via das dúvidas, corri para o estacionamento e escondi a prova do crime no porta-malas.

Percebi que as coisas estavam ficando fora de controle quando tive o sonho do julgamento. Sentada na cadeira do réu, eu ouvia o juiz fazer a fatídica pergunta: “Senhores do júri, chegaram a um veredito?” Ao que eles respondiam: “Sim, meritíssimo. A ré foi considerada culpada por ter tanto tempo livre!” Não, não, eu gritava, enquanto os guardas me levavam… Acordei coberta de suor, a cabeça palpitando.

Naquele momento, tomei a decisão: a tortura tinha de parar.

Procurei um terapeuta. Com sua ajuda, estou aprendendo a lidar com a culpa. Já posso tomar o chá das cinco na casa da minha avó ou ficar horas lendo, com o gato no colo, sem me submeter a sessões virtuais de autoflagelo.

Se venci o inimigo? Claro que não. Mas agora já sei onde ele mora. E quando não quero que ele saia de seu esconderijo, fecho a porta devagarinho.